(imagem da net, retirada do site http://www.cnotinfor.pt/equipa)
Há mais de 6 décadas que nasci numa típica aldeia beirã, lá
para as bandas da Serra do Açor, onde pouco abundava e quase tudo faltava. Por
lá cresci, lá fiz a escolaridade até à 4ª classe, lá vou todos os anos “matar
saudades” e de lá retenho, indeléveis, ternas e vivas recordações da infância.
Acontece que as boas recordações andam sempre de mãos dadas
com as menos boas, e é sobre essas que hoje escrevo estas parcas linhas, a
propósito do tremendo retrocesso social e civilizacional que está a ocorrer em
Portugal.
Frequentei a escola primário nos idos anos 50 do século
passado. Ir à escola era então, mais do que uma obrigação imposta pelo Estado
Novo, um dever sempre cumprido com entusiasmo e alegria pela miudagem daquelas inóspitas
aldeias. A escola era mista e frequentavam-na uma trintena de alunos; Cerca de
uma dúzia da aldeia e uma vintena que se deslocavam de três aldeias vizinhas,
todas a mais de 3 km de pedregosos caminhos de distância, percorridos a pé.
Como ainda não tínhamos “iphone 6”, o nosso despertador e marcador de horários
era o relógio da torre da capela, que de passo certo com a hora solar, lá nos
ia informando a cada 30 minutos da hora de levantar, da hora de ir para a escola, do intervalo para o recreio, da hora do almoço e ao final do dia da hora de saída.
Aqueles tempos não eram fáceis para ninguém e muito menos o eram naquelas paragens para as gentes que por ali tinham que sobreviver. Mas retornemos ao tema da escola e comecemos por rever um dia típico de aulas daquela época, para
depois darmos um salto ao presente e comparáramos o que evoluímos com os caminhos de retrocesso
que hoje trilhamos.
Logo pelo romper da manhã, com um pequeno almoço de broa de
milho migada em café de chicória, alguns de nós, ainda antes de irmos para a
escola, tínhamos que ir cortar e carregar um molho de mato para o curral das
cabras e ovelhas, senão mesmo soltá-las um pedaço para poderem, também elas
tomar o seu pequeno almoço (dejejum) de erva fresca. Feita esta primeira
tarefa, seguia-se o caminho da escola. Quem, como eu, morava na aldeia tinha a vida
mais facilitada porque apenas tinha que
percorrer uns 300 metros para a alcançar. O pior mesmo, era para os alunos que
vinham das tais aldeias vizinhas, que, quando chegavam à escola já vinham
com três quilómetros na sola dos pés,
alguns descalços. Para estes rijos miúdos e miúdas, temperados pelo escaldante sol do
verão e pelos rigores dos gélidos e nevados frios do inverno, ir à escola era
uma façanha hoje digna de reportagens em todas as TVs. No verão “arejávamos” o
corpo coberto de roupas remendadas, meio andrajosos e descalços. No inverno
valia-nos a salamandra que acendíamos para enxugar a roupa molhada com que
chegávamos à escola e aquecer os corpos e a fria sala de aula.
Mas se chegar à escola era uma aventura redescoberta e
revivida em cada dia, permanecer nela não o era menos. A escola tinha uma única
sala de aula e uma única professora, por isso os alunos da 1ª classe tinham que
assistir às aulas dos da 4ª e vice versa. Deste modo alguns de nós ao final da
1ª já sabíamos, de cor, os nomes dos rios, das serras e das linhas dos caminhos de ferro e outros de
nós, já na 4ª classe, não tínhamos como não saber o que fazia a Emilita nem
escusa para não sabermos as tabuadas do 9 para o 1, à força de durante 4 anos ouvirmos a lengalenga.
Bom, mas estar nas aulas de buxo vazio, sobretudo quando o
dito não chegou a encher com o café da manhã, era coisa de heróis, pelo que
ansiava-se sempre pela hora do almoço, que assim que chegada, chegava com ela
nova provação. Os que viviam na aldeia ainda aiam a casa enganar a fome com uma
sopa de couves e, os mais afortunados, com umas batatas com nabos regadas com o
azeita da colheita da casa. O pior era mesmo para os que vinham das outras
aldeias cujo almoço se resumia muitas vezes a uma marmita de arroz de feijão
acompanhada com… feijão, ou um ovo mexido com uma rodelas de chouriço que a mãe
lhes tinha colocado no cabaz ou no bornal. Para beber, o nosso “sumo vital” era
a cristalina água na bica da Fonte do Sabugueirinho.
As aulas da tarde decorriam idênticas às da manhã, e o
regresso a casa seguia as peripécias e aventuras inversas às da manhã, agora
com a diferença que nos esperava o aconchego da casa que por muito pobre e
modesta que fosse era o teto da família. Ah!! e à noite havia trabalhos de casa
para fazer, cópias, contas e redações (agora são composições), que a professora
passava, individualmente um a um, (professora também sofria – como hoje -),
trabalhos que tínhamos que fazer noite dentro à luza de uma bruxuleante candeia
de azeite, ou de petróleo para os mais afortunados que tinham dinheiro para o comprar.
Os anos passaram, e com o passar deles chegaram, a estas
aldeias recônditas os sinais do progresso, o telefone, as estradas, a luz elétrica, o rádio, a
televisão e a internet. Mas, ironia das ironias, quando começaram a ter as condições mínimas para com
elas viver na civilização do resto do Mundo, a população de crianças em idade
escolar reduziu-se substancialmente, e, sem elas fecharam-se progressivamente
as escolas. As crianças passaram a ser transportadas de táxi, ou de autocarro
primeiro para a sede da freguesia, depois para a sede do concelho, onde as
esperavam as condições de vida e de estudo que o progresso e a evolução
civilizacional foram gradualmente possibilitando, bem como o Apoio Social que a
redistribuição dos impostos, cada vez mais elevados, permitiam. Atingimos
assim, 5 décadas após os episódios que, dos meus tempos de escola, acima
narrei, um estádio civilizacional e de desenvolvimento que eu supunha
consolidado e irreversível. É esse o caminho lógico do progresso e do
desenvolvimento dos povos, aliás o progresso é mesmo isso.
Eis senão quando, um destes dias deste século desperto para
a realidade que, apesar de estar a passar ao meu lado, eu teimava em não querer
ver, e dou com o meu Portugal de pernas para o ar. São episódios simples nas nossas
vidas que fazem o “clik” e nos despertam de um sono que
iniciámos algures no passado e por lá ficámos a dormir. O episódio foi tão só o
seguinte: - O meu filho mais velho é um de entre os muitos milhares de
professores que engrossam a fileira dos “precários” que não são colocados pelo
Ministério e sobrevivem a dar 10 ou 20 horas de aulas por semana a troco de uns
míseros 400€ pagos, com meses de atraso, contra um Recibo Verde. Mas, embora este pormenor seja
importante, não o é o suficiente para encobrir o autentico recuo civilizacional
e sobretudo social que se vive em algumas escolas como aquela em que ele
leciona: - A escola providencia todos os dias um pacote de leite e uma peça de
fruta para os alunos, felizmente que o faz e que ainda o pode fazer; Mas o
revoltante mesmo é que há alunos que a única coisa que comem durante todo o dia
é o que a escola, com o seu parco orçamento já várias vezes minguado, lhe pode disponibilizar.
Não assistíamos a situações destas há décadas. Isto é como
que recuar aos tempos que acima relatei e que vivi. Interrogo-me para que serviu o
trabalho e o esforço de todo um povo (população em geral, trabalhadores,
empresários e governos) durante gerações, para transformarem Portugal num país
mais próspero, mais solidário e mais humano, para em três anos assistirmos a
tamanho retrocesso social, económico e civilizacional.
Isto é simplesmente nós a vermos o progresso de meio século a
sumir-se pela sarjeta e os nossos filhos e netos a verem o futuro por um
canudo.
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