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sábado, 15 de novembro de 2014

A Ver o Futuro por um Canudo


(imagem da net, retirada do site http://www.cnotinfor.pt/equipa)

Há mais de 6 décadas que nasci numa típica aldeia beirã, lá para as bandas da Serra do Açor, onde pouco abundava e quase tudo faltava. Por lá cresci, lá fiz a escolaridade até à 4ª classe, lá vou todos os anos “matar saudades” e de lá retenho, indeléveis, ternas e vivas recordações da infância.
Acontece que as boas recordações andam sempre de mãos dadas com as menos boas, e é sobre essas que hoje escrevo estas parcas linhas, a propósito do tremendo retrocesso social e civilizacional que está a ocorrer em Portugal.

Frequentei a escola primário nos idos anos 50 do século passado. Ir à escola era então, mais do que uma obrigação imposta pelo Estado Novo, um dever sempre cumprido com entusiasmo e alegria pela miudagem daquelas inóspitas aldeias. A escola era mista e frequentavam-na uma trintena de alunos; Cerca de uma dúzia da aldeia e uma vintena que se deslocavam de três aldeias vizinhas, todas a mais de 3 km de pedregosos caminhos de distância, percorridos a pé. Como ainda não tínhamos “iphone 6”, o nosso despertador e marcador de horários era o relógio da torre da capela, que de passo certo com a hora solar, lá nos ia informando a cada 30 minutos da hora de levantar, da hora de ir para a escola, do intervalo para o recreio, da hora do almoço e ao final do dia da hora de saída. 
Aqueles tempos não eram fáceis para ninguém e muito menos o eram naquelas paragens para as gentes que por ali tinham que sobreviver. Mas retornemos ao tema da escola e comecemos por rever um dia típico de aulas daquela época, para depois darmos um salto ao presente e comparáramos o que evoluímos com os caminhos de retrocesso que hoje trilhamos.

Logo pelo romper da manhã, com um pequeno almoço de broa de milho migada em café de chicória, alguns de nós, ainda antes de irmos para a escola, tínhamos que ir cortar e carregar um molho de mato para o curral das cabras e ovelhas, senão mesmo soltá-las um pedaço para poderem, também elas tomar o seu pequeno almoço (dejejum) de erva fresca. Feita esta primeira tarefa, seguia-se o caminho da escola. Quem, como eu, morava na aldeia tinha a vida mais facilitada porque apenas tinha  que percorrer uns 300 metros para a alcançar. O pior mesmo, era para os alunos que vinham das tais aldeias vizinhas, que, quando chegavam à escola já vinham com  três quilómetros na sola dos pés, alguns descalços. Para estes rijos miúdos e miúdas, temperados pelo escaldante sol do verão e pelos rigores dos gélidos e nevados frios do inverno, ir à escola era uma façanha hoje digna de reportagens em todas as TVs. No verão “arejávamos” o corpo coberto de roupas remendadas, meio andrajosos e descalços. No inverno valia-nos a salamandra que acendíamos para enxugar a roupa molhada com que chegávamos à escola e aquecer os corpos e a fria sala de aula.

Mas se chegar à escola era uma aventura redescoberta e revivida em cada dia, permanecer nela não o era menos. A escola tinha uma única sala de aula e uma única professora, por isso os alunos da 1ª classe tinham que assistir às aulas dos da 4ª e vice versa. Deste modo alguns de nós ao final da 1ª já sabíamos, de cor, os nomes dos rios, das serras e das linhas dos caminhos de ferro e outros de nós, já na 4ª classe, não tínhamos como não saber o que fazia a Emilita nem escusa para não sabermos as tabuadas do 9 para o 1, à força de durante 4 anos ouvirmos a lengalenga.
Bom, mas estar nas aulas de buxo vazio, sobretudo quando o dito não chegou a encher com o café da manhã, era coisa de heróis, pelo que ansiava-se sempre pela hora do almoço, que assim que chegada, chegava com ela nova provação. Os que viviam na aldeia ainda aiam a casa enganar a fome com uma sopa de couves e, os mais afortunados, com umas batatas com nabos regadas com o azeita da colheita da casa. O pior era mesmo para os que vinham das outras aldeias cujo almoço se resumia muitas vezes a uma marmita de arroz de feijão acompanhada com… feijão, ou um ovo mexido com uma rodelas de chouriço que a mãe lhes tinha colocado no cabaz ou no bornal. Para beber, o nosso “sumo vital” era a cristalina água na bica da Fonte do Sabugueirinho.
As aulas da tarde decorriam idênticas às da manhã, e o regresso a casa seguia as peripécias e aventuras inversas às da manhã, agora com a diferença que nos esperava o aconchego da casa que por muito pobre e modesta que fosse era o teto da família. Ah!! e à noite havia trabalhos de casa para fazer, cópias, contas e redações (agora são composições), que a professora passava, individualmente um a um, (professora também sofria – como hoje -), trabalhos que tínhamos que fazer noite dentro à luza de uma bruxuleante candeia de azeite, ou de petróleo para os mais afortunados que tinham dinheiro para o comprar.

Os anos passaram, e com o passar deles chegaram, a estas aldeias recônditas os sinais do progresso, o telefone, as estradas, a luz elétrica, o rádio, a televisão e a internet. Mas, ironia das ironias, quando  começaram a ter as condições mínimas para com elas viver na civilização do resto do Mundo, a população de crianças em idade escolar reduziu-se substancialmente, e, sem elas fecharam-se progressivamente as escolas. As crianças passaram a ser transportadas de táxi, ou de autocarro primeiro para a sede da freguesia, depois para a sede do concelho, onde as esperavam as condições de vida e de estudo que o progresso e a evolução civilizacional foram gradualmente possibilitando, bem como o Apoio Social que a redistribuição dos impostos, cada vez mais elevados, permitiam. Atingimos assim, 5 décadas após os episódios que, dos meus tempos de escola, acima narrei, um estádio civilizacional e de desenvolvimento que eu supunha consolidado e irreversível. É esse o caminho lógico do progresso e do desenvolvimento dos povos, aliás o progresso é mesmo isso.

Eis senão quando, um destes dias deste século desperto para a realidade que, apesar de estar a passar ao meu lado, eu teimava em não querer ver, e dou com o meu Portugal de pernas para o ar. São episódios simples nas nossas vidas que fazem o “clik” e nos despertam de um sono que iniciámos algures no passado e por lá ficámos a dormir. O episódio foi tão só o seguinte: - O meu filho mais velho é um de entre os muitos milhares de professores que engrossam a fileira dos “precários” que não são colocados pelo Ministério e sobrevivem a dar 10 ou 20 horas de aulas por semana a troco de uns míseros 400€ pagos, com meses de atraso, contra um Recibo Verde. Mas, embora este pormenor seja importante, não o é o suficiente para encobrir o autentico recuo civilizacional e sobretudo social que se vive em algumas escolas como aquela em que ele leciona: - A escola providencia todos os dias um pacote de leite e uma peça de fruta para os alunos, felizmente que o faz e que ainda o pode fazer; Mas o revoltante mesmo é que há alunos que a única coisa que comem durante todo o dia é o que a escola, com o seu parco orçamento já várias vezes minguado, lhe pode disponibilizar.
Não assistíamos a situações destas há décadas. Isto é como que recuar aos tempos que acima relatei e que vivi. Interrogo-me para que serviu o trabalho e o esforço de todo um povo (população em geral, trabalhadores, empresários e governos) durante gerações, para transformarem Portugal num país mais próspero, mais solidário e mais humano, para em três anos assistirmos a tamanho retrocesso social, económico e civilizacional.

Isto é simplesmente nós a vermos o progresso de meio século a sumir-se pela sarjeta e os nossos filhos e netos a verem o futuro por um canudo.


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